domingo, 22 de abril de 2012

Não podemos desistir


71. Mais esforços pela Unidade da Ciência

Sei perfeitamente que não posso resolver aqui e agora, para todo o sempre, o problema do conhecimento. Sei também que é necessário ser muito mais preciso sobre estas matérias. O meu propósito aqui é apenas exortar a que nos esforcemos e nos ofereçamos por superar o presente impasse e por seguir em frente.
Mas seguir em frente rumo a o quê? O que podemos nós fazer realmente quanto ao separatismo galopante das ciências? A unidade das ciências, em todo o caso, é um objetivo legítimo e realizável? E mesmo que o seja, que parte têm os filósofos a desempenhar nela?
A idéia mesma de unidade das ciências, reconheçamo-lo já, funda-se na assunção ontológica da unidade do mundo. Os filósofos aqui têm um papel a desempenhar na argumentação pela legitimidade desta assunção. Pela minha parte, argumentaria que, embora não haja provas definitivas e retumbantes para as nossas mais fundamentais assunções ontológicas, podemos, apesar de tudo, formular como e porquê essas assunções estão mais justificadas que as suas opostas alternativas. Na verdade, todos nós, pelo menos aqueles que passamos por sãos de juízo, em certa medida, pressupomos, inevitavelmente, que a realidade é de algum modo única, pois que a essência mesma daquilo a que chamamos pensar é estabelecer conexões, descobrir padrões e indagar por conceitos unificadores.
Certamente, ao fazer ciência, pressupomos uma espécie de unidade do mundo, pois que organizar experiências e interpretar resultados baseia-se na assunção de que o fluxo dos eventos é estruturado, ordenado, sujeito a leis. Um universo caótico, indeterminista e desconectado não poderia ser conceitualizado. Na verdade, não seria sequer um universo. De todo o modo, prosseguimos, na presunção de que aquilo de que tratamos é de fato um universo; que, sob toda essa complexidade e diversidade há uma espécie de unidade subjacente.
Fazendo isto fomos transportados até tudo aquilo a que podemos chamar de progresso, sendo razoável supor que isso nos revele tanto sobre o mundo como sobre nós próprios. O meu argumento a partir daqui é que, se nós vamos fazer uma tal assunção, é muito melhor fazê-la clara, consistente e auto-consciente, do que ser sobre isso esquizóide, como é a maior parte dos filósofos hoje em dia. Fazer isso é aceitar a legitimidade do objetivo de uma ciência unificada.
Quanto a isso ser realizável, podemos não ter bases para acreditar nisso no futuro imediato, dada a desigualdade de desenvolvimento que caracteriza o presente estado das ciências. Mas isso não invalida o seu caráter de objetivo a ser atingido para o futuro. Ele não é, por princípio, não realizável e há um grande valor heurístico em postulá-lo conscientemente como um objetivo a ser realizado.
As barreiras erigidas entre as ciências não são intransponíveis, mas devemos estar convencidos antes de estarmos em condições de começar a transpô-las. E devemos transpô-las, pois que o nosso progresso na compreensão do mundo e de nós próprios é obstruído por elas. A Natureza não respeita a nossa divisão acadêmica do trabalho. Há problemas que, pura e simplesmente, não podem ser resolvidos dentro das fronteiras de uma ciência separatista. O progresso, mesmo o das ciências separadas, é constrangido por essa mesma separação.
Mas como pode esse estado de coisas ser superado e por quem? A resposta, penso eu, é que a unidade das ciências deve ser construída empiricamente, pelos cientistas enquanto cientistas. Contudo, para assim o fazer, eles devem ser servidos por uma filosofia apropriada. Aqui os filósofos têm um papel a desempenhar, mas apenas enquanto parte de uma empresa comum, na qual os cientistas têm de se tornar muito mais filósofos e os filósofos têm de ser muito mais conhecedores da ciência.
Na consecução do objetivo da unidade da ciência, certas assunções filosóficas bloquearão a vista e obstruirão o caminho. Outras iluminarão o caminho e conduzirão a jornada na via certa.
Num lado, há a tradição hermenêutica continental, perpetuando o methodenstreit neo-kantiano, que deixa um abismo intransponível entre Naturwissenschaften e Kulturwissenschaften, negligenciando o natural em favor do humano.
Por outro lado, há a tradição positivista anglo-americana, que perseguiu o ideal de uma ciência unificada, pretendendo não deixar vácuos não ultrapassados, mas a sua unidade (tanto na variedade fenomenalista como na fisicalista) tem sido de um gênero altamente reducionista, deixando-nos com um enquadramento severamente constrangido, com nenhum modo de tratar do que é distintamente humano. Ou isso fica sem tratamento ou é tratado fora das fronteiras da ciência. Como a escolha é frequentemente posta, devemos ou deixar as ciências seguirem os seus caminhos separados, ou reduzir tudo à física.
Outras tradições intelectuais, também elas parte da história continental ou anglo-americana - tais como o marxismo, pragmatismo, empirismo radical, naturalismo, filosofia do processo - apontam para possibilidades mais promissoras.
A escolha entre separatismo e reducionismo deve ser rejeitada. Podemos perseguir a unidade da ciência sem adotar o modelo reducionista, optando por uma filosofia de degraus integrativos. Há uma filosofia ótima para atingir a unidade da ciência. É uma forma evolucionária, integrativa, imanentista de materialismo.
É uma filosofia que está orientada para a explicação do mundo nos termos do próprio mundo, sem apelos a forças exteriores ao mundo para explicar o mundo. Ela considera o método científico como abrangendo a totalidade, não deixando qualquer parte da realidade intocada pela ciência e fora das suas fronteiras. Não precisa fazer apelo a qualquer élan vital ou Chão do Ser para explicar o real. Toma em conta o papel do tempo e do processo de desenvolvimento na constituição do mundo e de nós próprios no que somos e no que podemos ainda vir a ser. Não sucumbe à tentação de pensar que pode haver qualquer explicação adequada de uma coisa sem a completa compreensão da sua historicidade.
Essa filosofia vê o interrelacionamento das coisas como essencial para a compreensão do que elas são. Consequentemente, procura pôr um fim ao empobrecimento de todas as disciplinas que se produz pela sua desconexão com outras disciplinas. Reconhece os degraus ascendentes da complexidade na organização da matéria e a emergência da novidade no processo evolucionário, de tal modo que cada degrau se apóia no precedente sem, contudo, se deixar reduzir a ele. Constrói a relação metodológica entre as diferentes ciências como paralela à relação ontológica entre os diversos níveis da realidade, com as várias ciências emergindo de entre si deste modo: Ciências Sociais > Psicologia > Biologia > Química > Física.
Não é o retiro para uma unidade indiferenciada. Reconhece-se sempre que a especialização foi necessária ao desenvolvimento das ciências, mas também que a sobre-especialização tem de ser transcendida numa síntese superior que dê plena conta da distinção, mas também da relação necessária entre as específicas áreas do saber.
O que isto significa, para tomar o exemplo da psicologia, é que esta é distorcida quando se opera a sua desconexão com as ciências sociais, por um lado, e com as ciências biológicas, por outro. Há certas coisas cruciais sobre a personalidade humana que não podem ser compreendidas sem a devida referência ao contexto sócio-econômico que modela decisivamente o seu caráter ou sem tomar em conta adequada as bases neurofisiológicas do comportamento. Contudo, sendo certo que o psicologismo não serve, também não nos servem o sociologismo e o economicismo, por um lado, nem o biologismo ou o fisicalismo, por outro.
A minha tese é então que cada uma das ciências precisa de se abrir às outras, sendo revitalizada e reconstruída nessa interação, com o objetivo da unidade da ciência em vista. E que uma coisa que é essencial a este processo é uma filosofia integrativa, uma visão do mundo sistemática, capaz de englobar todas as ciências dando embora a cada uma delas o que lhe é devido.
A maioria dos conceitos emitidos aqui têm apoio nos pensamentos da professora Helena Sheehan, da School of Communication da Dublin City University, podendo ser encontrada no site http://www.comms.dcu.ie/sheehanh/sheehan.htm.  

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