sábado, 21 de abril de 2012

Estamos a caminho


70. Esforços para a unidade da ciência  

Desde que o conhecimento humano consolidou o paradigma científico de que tudo é sistema, tudo é um todo, não há mais razão e nem espaço para as divisões, muitas vezes, entre conhecimentos que se acomodam dentro da mesma disciplina. Foi o tempo do cientista isolado. Foi o tempo das “guerras filosóficas”, para não dizer, também, das guerras religiosas.
Não teria havido o Programa conhecido pelo nome Genoma e não teríamos conhecido o DNA biológico de tudo o que vive.
E no bojo dos estudos que revelaram a intrincada montagem do DNA, ficou claro a quem queira entender, que aquilo lá não foi obra do acaso e sim de um ultra sofisticadíssimo planejador.
Por que não aproveitar os exemplos de duas ações multidisciplinares com resultados conhecidos e consagrados para continuar multidisciplinarmente atuando pra frente?
Uma das ações foi o Genoma, que resultou na elucidação do DNA. A outra foi a descoberta da fissão nuclear, que resultou na bomba nuclear. Trabalho de cientistas de múltiplas disciplinas, uns para inventar um meio de matar a vida e outros para conhecer a vida.
Parece chegado o tempo da Unidade das Ciências.
Passados são os dias dos cientistas que sabiam tudo de ciência, ou mesmo dos físicos que sabiam tudo de física.
Mas se os cientistas não podem construir o sentido geral, então quem pode? Os filósofos não parecem candidatos muito promissores. Na sua maioria retiraram-se para as subdivisões da sua própria disciplina, umas vezes tornando-se mais técnicos, outras vezes mais confusos, mas sempre mais insulares. De todo o modo, a maior parte deles não sabe nada de ciência, ao contrário dos filósofos do passado que, noutras áreas, não se diferenciavam em nada dos cientistas.
Os filósofos de hoje, na verdade, parecem singularmente inadaptados para este trabalho. Quando se trata de tarefas fundacionais, e mais ainda de tarefas construtivas, há uma falta de coragem generalizada da parte dos filósofos. Tornou-se tão complicado saber o que há para saber que os filósofos desesperam do saber, concitando-nos a todos a renunciar à noção de filosofia como uma disciplina fundacional (e muito menos construtiva) e a limitar-nos a prosseguir com a conversação amena que constitui a nossa cultura: não sabemos por que não queremos ou não sabemos porque não nos mostram o que há para saber?
O homem continua em busca do sagrado, mas os mestres insistem em olhar para o profano.
É tentador aquiescer, tão enormes são os problemas e as complicações. Mas não devemos concluir, pois, que o mundo não pode suportar esta paralisia epistemológica, este desespero ontológico. Se devemos renunciar à busca de certeza, contentando-nos com asserções justificadas, pois que assim seja. Asserções justificadas não são pequena coisa. Mais circunspetos, mas mais sábios, prossigamos com a nossa tarefa e com as nossas asserções.
Por todos os meios, tomemos conhecimento dos problemas e tomemos também encargo de ser claros sobre o que significa isso de ser "justificado".
Mas, ao fazê-lo, lembremo-nos que, por mais teoricamente informadas que sejam as nossas observações, as observações passadas foram também formativas das nossas próprias teorias atuais. Sejamos conscientes de que, ainda que seja impossível encontrar qualquer coisa que se possa considerar um "dado bruto", os nossos conceitos construtivos também não emergiram ex nihil . Eles são o produto do empenhamento ativo da nossa espécie com uma realidade que é irredutível a si própria. As nossas idéias (pelo menos as mais sãs e profícuas de entre elas) ostentam sempre as marcas tanto de nós próprios como de algo para além de nós próprios.
O tópico da Unidade da Ciência tem hoje em dia um certo ar anacrônico. Em especial quando a matéria é levantada por um filósofo. Vai-se logo para uma série de imagens do passado:
- imagens antigas do Uno parmediano;
- imagens medievais da metafísica tomista reinando como a rainha das ciências;
- imagens novecentistas das ciências separadas como estádios no desenvolvimento do Espírito Absoluto hegeliano;
- imagens da virada para o século XX, de uma ciência machiana enquanto a mais econômica organização das sensações, com a metafísica como o maior perigo para a unidade da ciência;
- imagens do limiar do século XX, do rígido zelo anti-metafísico do círculo de Viena por um movimento para a unidade da ciência reconstrutor da soma do conhecimento científico dentro do modelo de um sistema lógico de postulados experimentais.
Estas imagens são muito diversas, sem dúvida. As temos por idealistas e materialistas; metafísicas e anti-metafísicas; fenomenalistas e fisicalistas. Mas todas elas têm em comum uma qualidade de anacronismo. Reconhecemos a sinceridade e engenho humano que lhes subjazem, é claro, mas uma aragem de mofo se desprende delas todas.
Foi tudo já há tanto tempo e nós somos tão mais sofisticados agora. Percorremos um longo caminho, entretanto. Tornamo-nos conscientes de quão problemático é o nosso conhecimento. Já não reservamos essas brilhantes esperanças para a nossa ciência. Vivemos no meio dos destroços de unidades descartadas, das ruínas de sistemas demolidos. Hoje em dia não falamos já da unidade da ciência.
Mas talvez devêssemos. Certamente devíamos fazer alguma coisa. Não podemos continuar a pretender que tudo está bem, conversando prazenteiramente sobre coisas simples e pequenas, alheios às questões largas e complexas que reclamam urgentemente a nossa atenção.
É claro que há trabalho sendo feito e registram-se progressos, pelo menos pelos cientistas. Experiências prosseguem e os dados empíricos acumulam-se, mas quem sabe como tudo se somará, o que tudo significa, qual é o seu formato mais geral?
Mas realmente devemos saber. Devemos saber quais as implicações de tudo isso para formar um quadro sobre que gênero de mundo é esse em que vivemos e pelo qual nos alvoroçamos. E que tipo de criaturas somos nós, vivendo e alvoroçando-nos nele.
Mas quem poderá saber tais coisas? E como? Os cientistas dirão que não é esse o seu trabalho. As ciências apartadas estão tomadas por uma especialização galopante que torna quase impossível aos cientistas entender o que está sendo dito por outros cientistas nas subdivisões da sua própria disciplina, para não falar já dos cientistas de outras disciplinas.

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