quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Futuro da Sociedade (III)


92. Não esgotar as possibilidades, jamais

Refazer o papel da escola

Parece oportuno, pois, sublinhar desde já que a pedagogia deve ser o campo das possibilidades, exatamente porque a formação do pedagogo deve estar assentada em princípios epistemológicos com base na existência que não esgota suas possibilidades, no futuro, como problema essencial a ser posto e na busca de um agir coerente.
A este propósito Harvey (1994), com muita propriedade e profundidade de análise, situa a complexidade de definir tanto a modernidade como a pós-modernidade, não podendo ser reduzidos a uma única definição unívoca, considerando as múltiplas abordagens em campos tão distintos como a lingüística, a antropologia, a filosofia, a teologia, a ciência política. O que marca espantosamente a pós-modernidade, para esse autor é a aceitação total e ilimitada do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico: "o pós-modernismo nada, e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes das mudanças, como se isso fosse tudo o que existisse" (p.49).
Não se trata de unificar as tendências, políticas, modelos. Trata-se de deixar claro onde cada metodologia pode desembocar.
"Mas, se como insistem os pós-modernistas, não podemos aspirar a nenhuma
representação unificada do mundo, nem retratá-la com uma totalidade cheia de conexões e diferenciações, em vez de fragmentos em perpétua mudança, como poderíamos aspirar a agir coerentemente diante do mundo? A resposta pós-moderna simples é de que, como a representação e ação coerentes são repressivas ou ilusórias (e, portanto, fadadas a ser
autodissolventes e autoderrotantes), sequer deveríamos tentar nos engajar em algum projeto global" (Harvey, 1994, p.55).
Como conseqüência temos o pragmatismo como única filosofia possível, a ação concebida e decidida no âmbito dos determinismos locais, a redução da experiência a um presente puro e sem relação com o tempo. O conceito moderno de alienação, que pressupunha um sentido de um eu coerente e não
fragmentado, e com uma intencionalidade de projetos que se estendessem ao longo do tempo ou com um pensar acerca da produção de um futuro melhor, é substituído na pós-modernidade com o conceito de fragmentação do sujeito.
Considerando a experiência meramente ligada aos eventos imediatos, ao sensacionalismo do momento, produz-se uma ruptura de ordem temporal não apenas com o futuro, mas também com o passado. É abandonado qualquer sentido de continuidade e memória histórica: "Há, no pós-modernismo, pouco esforço aberto para sustentar a continuidade de valores, de crenças ou mesmo de descrenças" (Harvey, 1994, p.59). A este propósito, Elias (1998) alerta para não pensar e falar em termos reducionistas da mudança e que o próprio conceito de tempo não pode sucumbir a nenhuma pressão conformista. O tempo refere-se a "relações posicionais no interior de um continuum evolutivo que procuramos determinar sem abstrair seus movimentos e mudanças contínuas" (p. 82).
Um dos educadores brasileiros, que reflete as discussões acima em sua íntima ligação com a educação, é Frigotto (1998). Em sua análise da perspectiva da pós-modernidade, aponta como elementos positivos a ênfase na emergência de aspectos da tradição iluminista, a exemplo da subjetividade humana e do campo simbólico; mas identifica também sua negatividade o risco de morte das ciências sociais, uma vez que o homem é eliminado como sujeito e como objeto e o relativismo absoluto se impõe como forma de conhecimento.
Diante das ameaças do relativismo é necessário ancorar nossas escolhas em algum horizonte que nos permita ampliar cada vez mais os espaços de possibilidade. Analisando a crise da transição para a pós-modernidade,
e a racionalidade técnica que não incentiva a pensar o futuro, Santos (2000a) afirma que o "único caminho para pensar o futuro parece ser a utopia. E por utopia entenda-se a exploração, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade" (p.331-332). A utopia deve ser duplamente relativa, para esse autor: por um lado chama a atenção para o que ainda não existe, contudo a imaginação do novo, parte daquilo que já existe; requer, portanto, um conhecimento profundo da realidade até mesmo como forma de evitar que a imaginação radical entre em rota de colisão com seu realismo.
O pensamento utópico sofreu fortes hostilidades com o desenvolvimento da racionalidade científica e com sua expansão do estudo da natureza para o estudo da sociedade. Exige, atualmente, continua Santos (2000a) uma nova epistemologia e uma nova psicologia: "Enquanto nova epistemologia, a utopia
recusa o fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades, e cria alternativas; enquanto nova psicologia, a utopia recusa a subjetividade do conformismo e cria a vontade de lutar por alternativas" (p.333). A nova epistemologia e a nova arqueologia participam de uma arqueologia do presente, entendida como trabalho de escavação onde nada foi realizado, descobrindo o porque dos silêncios, das alternativas que deixaram de ser construídas e pelas muitas questões que não foram levantadas.
As características peculiares da utopia, no entender de Santos (2000a) são o realismo, a ecologia, a democracia e o caos. É realista porque parte do princípio de realidade cada vez mais partilhado e que tem as virtualidades que Gramsci achava essenciais na construção de hegemonias. É utópica ao considerar que sua realização vai além da transformação dos modos de produção, envolvendo o conhecimento científico, a vida como um todo, as formas de sociabilidade e uma nova relação paradigmática com a natureza. É
democrática porque aspira a uma realidade politizada e ao exercício radical da cidadania. Finalmente, "É uma utopia caótica porque não tem um sujeito histórico privilegiado. Os seus protagonistas são todos os que, nas diferentes constelações de poder que constituem as práticas sociais, têm consciência de que a sua vida é mais condicionada pelo poder que outros exercem sobre outrem. Foi a partir da consciência da opressão que nas últimas três décadas se formaram os novos movimentos sociais" (`2000b, p.44). Além de reinventar os mapas de emancipação social, o pensamento utópico possibilita a vivência de subjetividades com capacidades e vontade de usar tais configurações.
Paulo Freire buscou incansavelmente novas formas utópicas desde os pressupostos da Pedagogia do Oprimido (2000), influenciando uma série de educadores críticos comprometidos com a possibilidade de alternativas educacionais.
Uma problemática que Santos levanta é a questão do senso comum, assunto importante, uma vez que nos liga às críticas que Gramsci (1984) efetua acerca do senso comum. O autor português postula um novo senso comum, fruto de um conhecimento emancipatório. Em si mesmo, o senso comum é
conservador, mas, transformado pelo conhecimento emancipatório, “é imprescindível para intensificar a trajetória da condição ou momento da ignorância (o colonialismo) para a condição ou momento do saber (a
solidariedade)” (2000a, p.106). A solidariedade, como forma de conhecimento, é condição necessária da solidariedade enquanto prática política. O senso comum adquire conotações de ética, de solidariedade e de
participação. É claro que o autor insere a discussão do senso comum no seio da racionalidade emancipatório, vislumbrando-o como uma nova percepção de mundo e uma possibilidade de mudança.
Quando o senso comum é criticado por Gramsci, certamente é um tipo de pensamento inserido em uma visão de mundo imutável e fatalista; o que o autor italiano pretende, também é o alcance da emancipação, que ele chama de concepção crítica, e que é o objetivo de Santos.
Enfim, se a condição da pós-modernidade trouxe novos áreas para a humanidade, por outro lado há aspectos preocupantes que devemos considerar em nossa análise e que podem trazer conseqüências nos
processos formativos em educação, por mais que tais percepções estejam explícitas nos projetos pedagógicos institucionais ou pessoais dos educadores. A complexidade do real, postulada por Morin (2000) como um novo paradigma na organização do conhecimento, abala os pilares clássicos da certeza: a ordem, a regularidade, o determinismo, a separabilidade, o valor da prova produzidas pela indução e dedução. A ciência cartesiana parte de um pensamento que isola e separa, que reduz o todo às suas partes, aos seus aspectos mensuráveis, quantificáveis. A necessidade atual exige a substituição de um "pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto" (p.89). A partir desta complexidade, Morin propõe em primeiro lugar uma cabeça bem-feita que necessita despertar a inteligência geral adormecida pela escola vigente, e que deve conduzir ao imperativo educacional da capacidade de contextualizar e globalizar; o aprender a viver, o enfrentar a incerteza, a aprendizagem cidadã, constituem outros imperativos que devem propiciar uma nova maneira de ver o mundo.
Mudar a maneira de pensar é fundamental para a busca desta nova maneira de ver o mundo e de articular saberes e competências. A  transdisciplinaridade vem sendo apontada como a ruptura necessária
com a linearidade de ler o mundo. É importante enfatizar que o mesmo Morin (2000) considera difícil a definição de termos polissêmicos e imprecisos como interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e
transdisciplinaridade. Vamos usar suas próprias palavras para uma educação baseada na prática transdisciplinar: "A interdisciplinaridade pode significar, pura e simplesmente, que diferentes disciplinas são colocadas em volta de uma mesa, como diferentes nações se posicionam na ONU, sem fazerem nada além de afirmar, cada qual, seus próprios direitos nacionais e suas próprias soberanias em relação às invasões do vizinho. Mas interdisciplinaridade pode significar também troca e cooperação, o que faz com que a interdisciplinaridade possa vir a ser alguma coisa orgânica. A multidisciplinaridade constitui uma associação de disciplinas, por conta de um projeto ou de um objeto que lhes sejam comuns; as disciplinas ora são
convocadas como técnicos especializados para resolver tal ou qual problema; ora, ao contrário, estão em completa interação para conceber esse objeto e esse projeto, como no exemplo da hominização. No que concerne à transdisciplinaridade, trata-se freqüentemente de esquemas cognitivos que podem atravessar as disciplinas, às vezes com tal virulência, que as deixam em transe" (p.115). Na história das ciências, complementa o autor, são os complexos de inter-multi-trandisciplinaridade que provocam fecundidade, necessitando conservar os conceitos-chave implícitos: cooperação, objeto
comum, projeto comum. A superação das fronteiras proposta pela transdisciplinaridade vai além da interação proposta pela inter ou pela multidisciplinaridade. Acreditamos que a concepção de Presença
histórica que adotamos neste trabalho e que nas seções a seguir será retratada nas suas dimensões constitutivas, pretende ser uma tentativa de propor ao profissional da educação a superação das fronteiras
de seus conhecimentos, não um saber a mais, sobreposto aos que o currículo já lhe sugere há décadas e que as propostas de competências que estão surgindo acerca de seu fazer estão repropondo ou tentando superar.
O contexto da complexidade e da transdisciplinaridade deve sempre refletir e ampliar as discussões acerca da importância das relações entre os conteúdos de uma disciplina e de outra disciplina; entre as disciplinas e o curso; entre as disciplinas e a vida, visando evitar a elaboração de conhecimentos parcelados advindos do pensamento linear, promovendo a construção de um saber uno, com visão conjunta e de um todo composto por muitos aspectos. Gadotti (2000) apresenta a Carta da transdisciplinaridade, conjunto de proposições considerados um contrato moral que acima de tudo recusa qualquer tentativa de reduzir o ser humano e a realidade a um
único nível de suas múltiplas dimensões; a transdisciplinaridade é considerada não como forma de dominação sobre as demais disciplinas, mas abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa.
CONCLUSÃO
A lógica de aquisição de saberes e competências baseadas essencialmente na convicção de uma ciência básica que dá conta da realidade, abre espaço também para uma educação que contemple a arte, a sensibilidade, o engajamento no concreto. Aponta para competências em permanente
reconstrução, apelando para a integração não apenas da teoria com a prática, mas dessas com a própria biografia e com um ser político que é chamado a transformar e transformar-se mediante sua prática social e cultural.
Como perdemos muito dessa consciência nestes últimos 50 anos, agora há que correr atrás do prejuízo e virar o jogo. Os líderes são convocados a educar, conduzir, dar exemplos. Chamamos a atenção do pai, da mãe, do terapeuta, do empresário, do síndico, do político, do educador e de todos quantos tenham responsabilidades pessoais diante de pequenos, médios e grandes grupos humanos a partir de agora. Chegou a hora de agir.

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