sexta-feira, 11 de maio de 2012

A maior população do planeta


86. A fé que move a China

”Todo chinês é taoísta em casa, confucionista na rua e budista na hora da morte”. Para muitos estudiosos, esse ditado chinês resume a complexa espiritualidade da nação mais antiga do mundo. Em seus 5 mil anos de história, a China teve a alma moldada pelos livros dessas 3 doutrinas, surgidas há mais de 20 séculos. Por isso, apesar do vertiginoso crescimento econômico que moderniza o país a toque de caixa, quem quiser entender a China de hoje precisa voltar o olhar para o passado distante. Enquanto arranha-céus e canteiros de obras mudam a face das milenares metrópoles chinesas, Confúcio, Tao e Buda ainda explicam muito sobre os chineses e sua relação com o mundo. Em vez de se excluírem, essas doutrinas se misturam como ingredientes de uma poderosa salada espiritual – a chamada “religião tradicional chinesa”, que inclui de filosofia e regras de etiqueta a magias, talismãs e reencarnação. Nas próximas páginas, você vai entender como se formou essa tríade sagrada, cujas origens se perdem na lenda e cujos ensinamentos regem a vida de mais de 1 bilhão de pessoas.
Num país em que sabedoria conta mais que santidade, nenhum sábio desfruta de tanto prestígio quanto Kung-Fu-Tzu – o “Venerável Mestre Kung”, também conhecido por seu nome latinizado, Confúcio. Nascido no século 5 a.C. – uma época de guerras, fome e miséria –, Confúcio estava mais interessado em reformar o mundo dos homens do que em desvendar os mistérios do Universo. E buscou o antídoto para os problemas sociais em clássicos da civilização chinesa: ao longo da vida, ele compilou, editou e comentou um conjunto de obras hoje conhecidas como Clássicos Confucianos (leia mais na página 24). Nos séculos seguintes, discípulos e seguidores reuniram os ensinamentos do mestre nos Analectos e transformaram o confucionismo na ideologia oficial do império.
A filosofia de Confúcio se baseia no conceito de ren, termo que pode ser traduzido por “benevolência” ou “humanismo”. Para ele, um sábio deve medir suas ações tendo em vista o bem da humanidade – tanto as gerações presentes quanto as futuras. Esse apelo ao altruísmo universal se resume na máxima cunhada pelo mestre 400 anos antes de Jesus Cristo: “Não faças aos outros o que não desejes que te façam”. Outro conceito essencial do confucionismo é o li, que pode ser traduzido como “ordenamento social”. Confúcio acreditava que só poderia haver harmonia entre os homens se cada indivíduo seguisse à risca as normas de sua sociedade – incluindo respeito à hierarquia e etiqueta.
“Socialmente – ou seja, ‘na rua’ – o chinês moderno ainda é profundamente confuciano”, diz o sinólogo André Bueno, do Departamento de História e Filosofia da Faculdade Estadual de União de Vitória, Paraná. O apreço pelas regras de etiqueta pode parecer estranho aos olhos de outros povos – um tipo de choque cultural que ocorre com freqüência entre empresários ocidentais que vão fazer negócios na China. Um exemplo bem atual da obsessão confuciana por esses protocolos: entre os chineses, cartões comerciais devem ser apresentados com os braços estendidos, uma suave reverência com a cabeça e a palma das mãos voltadas para o interlocutor. Quem entrega seu cartão com displicência se arrisca a arruinar transações milionárias. Exagero? Não, confucionismo.
Apesar de sua influência sobre a espiritualidade chinesa, o confucionismo está mais para filosofia ética do que religião. Confúcio nada disse sobre vida após a morte, e há quem diga que era ateu. Para Kung-Fu-Tzu, o sábio deveria fazer o bem pelo bem, sem esperar recompensas divinas. O que soou muito estranho para os missionários cristãos que chegaram à China a partir do século 15 e passaram a descrever o confucionismo como “religião oficial” do país. É verdade que o cético e pragmático mestre Kung pregava o respeito aos cultos tradicionais como forma de coesão social. Mas foi nas outras duas faces da tríade, o taoísmo e o budismo, que a alma chinesa saciou seu apetite pela transcendência.

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