domingo, 13 de maio de 2012

Mais sobre a China

88. A salvação da alma dos chineses

Mas com todos seus feitiços e meditações o taoísmo nada diz sobre a vida após a morte. E é aí que entra o budismo, fundado também por volta do século 5 a.C., na Índia. Siddharta Gautama (o Buda) viveu na época de Confúcio e Lao-tsé – mas foi só por volta do século 1 a.C. que obras budistas chegaram à China, com viajantes que cruzavam o Himalaia. Entre os conceitos budistas que “colaram” na China está o “nirvana”, estado de elevação espiritual em que todo sofrimento desaparece, e o “samsara”, que pode ser entendido como reencarnação. Durante séculos, monges chineses traduziram obras em línguas indianas e compuseram seus próprios tratados em mandarim – o resultado disso tudo é a coleção conhecida como Grande Tesouro das Escrituras, compilado no século 10.
O budismo original se dividia em duas escolas: o Theravada, mais cético e filosófico, e o Mahayana, uma espécie de caldeirão de crenças que aceita a existência de deuses, espíritos e criaturas fantásticas, como demônios e serpentes falantes. Foi esta versão que fez sucesso no país de Confúcio, dando origem a duas formas de budismo típicas da China. Uma é o chan, ou zen, que misturou crenças budistas a práticas de meditação do taoísmo. A outra é o “terra pura”, ramo mais popular, que venera diversos espíritos iluminados em vez de um único Buda.
E assim deciframos a última parte do enigmático provérbio citado lá no início. Pois é na hora da morte que o pragmático chinês renuncia às preocupações desse mundo e chama monges budistas para recitarem os sutras – textos sagrados que garantem sorte na próxima encarnação. “O raciocínio é simples: se corremos o risco de reencarnar, então é melhor chamar um especialista”, resume o sinólogo Bueno. Mais chinês, impossível.
A tríade espiritual passaria por maus bocados a partir de 1949, quando o país foi dominado pela ditadura comunista de Mao Tsé-tung. Por sua ênfase na reflexão individual, o confucionismo virou ideologia “burguesa”. Enquanto isso, as práticas budistas e taoístas eram descartadas como “superstições abomináveis”. Os livros foram proibidos e muitos queimados. Mas a repressão mal afrouxou, na década de 1980, e a borbulhante religiosidade chinesa voltou à tona, com resultados muitas vezes irônicos. É o caso do destino póstumo de Mao Tsé-tung. Alguns anos após sua morte, o ditador ateu passou a ser venerado como espírito do panteão taoísta. Hoje, quase todos os táxis de Pequim têm um amuleto no retrovisor, onde se vê a fotografia de Mao cercada de franjas e sininhos – uma simpatia contra acidente de trânsito.
Assim como sua efígie, a ideologia de Mao também foi virada pelo avesso por seus sucessores. Quando abriu a economia chinesa, por volta de 1988, o reformista Deng Xiaoping justificou sua traição ao marxismo com uma tirada tipicamente chinesa: “Não importa se o gato é preto ou branco. Importa que cace ratos”. Nos anos seguintes, o onívoro dragão chinês, que já tinha digerido a doutrina de Marx, fez o mesmo com o capitalismo – transformando essas duas ideologias ocidentais em algo, digamos, bem chinês. O que não é de estranhar no país de Confúcio, que também cunhou outra máxima famosa: “Devemos copiar o que admiramos, para depois superá-lo”.

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